A Catedral



Entre o equilíbrio do moderno e do histórico, estava Filip Petrović, um homem que não se curvava ao tempo. Historiador, conhecedor das sombras que o sol projetava sobre o mármore da Praça Peristilo. Todas as manhãs, caminhava por ali segurando seu café com tranquilidade, o semblante sempre pensativo, como se estivesse tentando decifrar algo — e, de fato, estava.  

Sua mente nunca lhe dava descanso. Mesmo quando dormia, sonhava com aquilo que ocupava seus pensamentos. Acordava com a urgência de quem precisa pensar além de si mesmo. Aliás, pensar em si era um ato raro; suas escolhas eram sempre as mesmas. Suas mudas de roupas estavam sempre organizadas, limpas e prontas para uso. O chapéu de verão, a caminhada à tarde, o café expresso no início da manhã — tudo fazia parte de um ritual quase sagrado, de um homem que se conhecia tão bem que já não via mais graça nisso. O novo era seu maior mistério.  

Naquela tarde, porém, a rotina se desfez. Filip estava ali havia seis horas, incansável, mesmo que seus pés pesassem como pedra. 

As ruas vibravam. A catedral parecia brilhar. Se Deus existisse e sua matemática nos regesse, desenhando e projetando nossa holografia, iluminaria aquela noite para mostrar o quão único pode ser o que se cria.  

Pensou na nova reforma, e o peito apertou. Lembrou-se do que estava por vir — nenhum país escaparia. Na França, itens originais estavam sendo queimados; em Madri, o último acontecimento enlouquecera o comitê de historiadores da União Europeia. A linguagem paradoxal e geométrica de Picasso encontrava mais desconfiguração do que o próprio pintor jamais imaginaria ser possível. Guernica fora esfaqueada.  

Que tremenda blasfêmia. Deus e seu arsenal monocromático perderiam para a nova ordem.  

Ao longe, pessoas andavam. Perturbavam-lhe os miolos que restavam ao pensar que todos já haviam fritado com tanta barbárie. O evento trouxe gente de toda a Europa — um espetáculo em nome do novo. O passado se despedia como um convidado silencioso, sem palmas nem discursos.  

A pašticada fumegava nos pratos, o vinho tingia lábios e risadas, e as garrafas de Jamnica cintilavam sob o pôr do sol.

E então, a barulheira dos repórteres. A ventania do tempo corria impiedosa. A demolição era iminente. A catedral mais antiga do mundo viria abaixo, não pelo desgaste, mas pelo decreto. Em nome do novo, tudo que resistia ao tempo deveria desaparecer.  

O povo estava eufórico. Recomeço. Vida nova, nova vida. O evento era uma celebração da transitoriedade, do frescor da modernidade.  

Mas Filip… Filip, de coração revoltado, enxergava o que nenhum daqueles seres pálidos e desprovidos de graça conseguia ver. O esquecimento. A perda irreversível. O vandalismo contra a história. A profanação do que era humano, sagrado e único.  

Olhou para a catedral e viu Deus. Sim, viu Deus. Deus era homem, homens. As mãos que ergueram aquelas pedras, cada traço esculpido com devoção. Deus era o sacrifício humano que ali residia, e o túmulo que agora repousava sob as sombras do tempo, felizmente sem restos, para que estes também não se tornassem alvo de vexame.

Por quê? Por que não compreendiam? Por que eram incapazes de enxergar o peso do que jamais poderia ser recriado? O singular, o irrepetível, aquilo que existiu uma única vez e nunca mais? A inquietação corroía-lhe o pensamento, um turbilhão incessante de questionamentos sem resposta.

Enquanto Filip se perdia na reflexão sobre o futuro incerto, ao longe, a repórter falava com um entusiasmo afiado, quase cortante. Seu sorriso, largo e iluminado, trazia a precisão gélida de uma lâmina que fere sem aviso. Era a frieza urgente de quem precisa esquecer, de quem apaga para seguir, de quem mata para aliviar. Como se tudo fosse descartável, como se a vida exigisse datas de validade para continuar. Apagar, apagar, apagar. Porque encarar é mais do que podemos suportar.

— Senhores e senhoras, testemunhamos hoje um marco do progresso! A antiga catedral, que por séculos se ergueu como símbolo do passado, cede lugar ao futuro. Com grande entusiasmo, celebramos a modernização e a renovação de nossa cidade, pois nada deve permanecer além do tempo que lhe cabe. A nova ordem exige espaço, e é em nome do avanço que despedimos as velhas estruturas para dar lugar ao que está por vir!

Com passos arrastados e o espírito inquieto, Filip rabiscou suas últimas anotações. Nos olhos reteve a derradeira visão da catedral—sua simetria, seus equívocos arquitetônicos—e entre os escombros de sua lembrança não estavam apenas pedra e fé, mas os vestígios ocultos de incontáveis existências ali entrelaçadas. Como pôde acontecer? Remoía a ideia como um homem traído e exposto ao escárnio público. Vergonha. Vergonha. Vergonha. O que somos se não podemos coexistir com o que já foi? Onde está o valor daquilo que é irrepetível?

Do alto de um edifício antigo, recém-pintado, uma jovem poeta assistia ao céu limpo, embriagada pelo vinho e pelo burburinho da vizinhança. Seus pensamentos flutuavam, soltos, embriagados também.  

— Eu sou a Catedral! — murmurou, num brinde solitário ao abismo. — Carrego histórias e segredos, ruínas e tesouros. Camadas sobre camadas que o tempo não apaga, apenas reforma, desfigura, descarta.  

Cambaleou, apoiando-se na parede fria.  

— Eu sou pedra e poeira. Meus muros guardam o eco de passos antigos. Sou feita de fragmentos—reformada por mim mesma, lapidada por mãos alheias. Vazia e plena. Às vezes, aberta para oferendas; outras, fechada em silêncio. Refleto as luzes que escolho, mas carrego sombras que não posso evitar. E, no mais profundo de mim, entre as fissuras e cicatrizes, há algo irreparável. A alma que persiste, que desafia a erosão dos dias. Uma história que só ela pode contar.  

Ergueu o copo ao céu, os lábios trêmulos num sorriso amargo.  

- Sou sagrada. 

- Irão vocês assinar minha demolição? Covardes… todos vocês… covardes.

O estrondo veio. O passado cedeu. O pó se ergueu.  

E o silêncio, por um breve momento, foi maior que tudo. O passado, o presente e o futuro estavam de luto.

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