O Peso dos Sapatos



Iris descia a rua com os pés machucados, o sapato de salto, comprado com o último pagamento, comia um pouquinho do seu juízo a cada passo. O céu escurecera, mas a rua sem saída vibrava: vizinhos tagarelavam nas calçadas, crianças corriam em brincadeiras barulhentas, e adolescentes jogavam vôlei na pracinha. O suor escorria pela testa de Iris, misturando-se à exaustão de um dia longo e conflituoso. Os sapatos, apertados, esmagavam seus pés e o restinho de paciência que ainda lhe restava. Sorria amarelo aos vizinhos que a cumprimentavam, sentindo os dedos comprimidos como se o mundo a estivesse espremendo.

Ao abrir o portão de casa, o quintal estava quieto, exceto pelo farfalhar dos passarinhos que Marcos insistia em cuidar. As luzes da sala acesas denunciavam que ele já chegara. Iris detestava a bagunça das gaiolas, as penas pelo chão, o chilrear incessante, mas respirou fundo, abriu a porta e, com alívio, abandonou os sapatos na entrada, os pés finalmente livres.

— Boa noite, meu bem. Já comeu alguma coisa? O que vai querer pro jantar? — perguntou, a voz cansada, mas com um toque de alívio por estar em casa.

Marcos, de costas, mexendo nas gaiolas, respondeu sem erguer os olhos:

— Chegou tarde, hein?

O tom seco cortou o ar como uma lâmina. Iris sentiu o sangue subir.

— Experimente pegar o ônibus em horário de pico do centro pra cá e verá que horário é só um detalhe. Além disso, o dia foi cheio e estou exausta. Quer saber? Vou tomar um banho, mal cheguei e já estou irritada.

Marcos recuou, cauteloso.

— Não é pra tanto, eu só comentei, meu amor. Como o que você quiser preparar.

Iris trancou-se no banheiro, a água quente caindo sobre os ombros, mas sem apagar a revolta que borbulhava em seu peito. “Se ele soubesse o quanto eu ralo nesse emprego”, pensou, ensaboando-se com gestos bruscos, como uma mãe apressada dando banho numa criança atrasada para a missa. Abriu o shampoo e viu que estava no fim. “Sempre assim, tudo acabando, até eu.” A irritação crescia, alimentada por memórias antigas: as provocações de Marcos, o ciúme bobo que ele jogava como se fosse culpa dela. Lembrou do pai, das surras nos irmãos, das ameaças sem motivo, e a raiva explodiu. “Saí da casa de papai e enfrentei a vida, doída." Doía. - "Não é agora que vou sofrer nas mãos de um macho, mas nem que a vaca tussa!”

Saiu do banho com o coração em chamas, preparou o jantar em silêncio, resmungando sobre os passarinhos. Naquela noite, dormiram como pedras, distantes, ele com a culpa entalada, ela com a ira pulsando. Na manhã seguinte, ele tentou se aproximar, sussurrando:

— Chegue mais perto, chegue.

Iris levantou-se, os olhos faiscando.

— O que aconteceu? - perguntou ele, confuso.

— Sempre a mesma pergunta, Marcos. Eu  vou-me embora. Minha filha saiu do apartamento agora que casou, e eu vou pra lá. Não dá pra viver com a sua ignorância.

Ele endureceu, o rosto misturando medo e orgulho.

— Quer ir? Pois vá. Ninguém tá te segurando.

A tristeza veio ardente e o coração parecia pular do peito da mulher. Agora teria que provar que de brincadeira não estava - pensou ao segurar as lágrimas. A mágoa rasgava seu peito, e o silêncio daquele homem bruto que ela amava a apunhalava — não pelas costas, mas de frente. Então, firmou-se na ideia e se deixou embalar por ela.

Os dias seguintes foram de malas, caixas e silêncios. Iris arrumava suas coisas com o coração partido, mas doce, como açúcar derretendo em água quente. Chorava escondido, desejando que Marcos a impedisse, que brigasse, que mostrasse que a queria ali. “Se ele me ama, não vai deixar eu ir. Vai me trancar, vai gritar.” Era o sinal que ela pedia.

Mas o dia da mudança chegou, e Marcos, com as mãos calejadas e o olhar baixo, ajudou a carregar as caixas para o caminhão. Cada objeto que ele colocava no veículo era uma facada no peito de Iris. Ele não brigou. Não a segurou. Não pediu para ela ficar. Quando o caminhão dobrou a esquina, Iris olhou pela janela, os pés ainda marcados pelos sapatos apertados, o coração mais pesado que nunca. 

Meses depois, no apartamento da filha, Iris caminhava descalça pela sala, livre dos sapatos que a machucavam. Às vezes, ouvia um passarinho cantando ao longe e, sem querer, sorria. Marcos começou a ligar, de vez em quando, perguntando se ela estava bem. E ela estava. Ele a procurou, tentou conversar, pediu desculpas desajeitadas, mas Iris, com o coração agora leve, não voltou. 

Não era mais sobre raiva ou orgulho; era sobre ela mesma.

O tempo passou e eles se falavam de vez em quando, riam de coisas bobas, lembravam dos dias na rua sem saída. Era um laço novo, sem amarra.

A amizade que nasceu entre eles — frágil no começo, mas verdadeira — era passarinho sem gaiola.

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